segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Fidjinha Játa

Pela calçada da Ladeira vira subir uma das pessoas que mais medo me incutia, quando menino e moço. Um exemplo de longevidade, vivendo em condições extremamente precárias. Tratava-se da Fidjinha - vulgarmente conhecida como a Jata (a maluca).

Quando pequeno, eu brincava pelas ruas da Estância, como todas as crianças da minha idade e gostava de espreitar através das grades da Cadeia, situada no centro da Vila.

Da janela, os presos olhavam para mim e, de mãos estendidas, pediam-me cigarros. Lá dentro, reinava uma sinistra escuridão e um cheiro a mofo chegava até mim, vindo das grossas grades de ferro que retiravam a liberdade àquela gente de face amarelada. Além dos presos do delito comum, havia os malucos - os mais perigosos - e, por isso, detidos por precaução.

A Fidjinha nunca esteve detida pois não era pessoa calma, criatura inofensiva, pelo menos durante o dia. Andava mal vestida pelas ruas, rota, suja e com as pernas em chagas, que tapava com folhas de chaluteiras. Apoiava-se, quase sempre, num longo cajado e não falava o crioulo, mas sim um refinado português. Diziam que não era a voz dela, mas sim a de um espírito nela entranhado. Contava-se que, outrora, a Fidjinha fora uma senhora de boas famílias de esmerada educação e, por desgostos amorosos enlouquecera-se, havia um ror de anos.

Raras vezes andava de dia e, só quando o sol se punha por detrás do morro da Centinha, é que ela vadiava pelas ruas, acompanhada do seu inseparável e comprido cajado. Noutras ocasiões, normalmente quando a Lua estava cheia, trocava a sua habitual calma por uma agressividade sem limites, e, por qualquer "dá cá aquela palha", corria atrás dos garotos de cajado em riste, para os agredir.

Certa vez, fui comprar cigarros, a mando do papai, e tive o azar de me encontrar com a Fidjinha, numa altura em que a Lua estava redonda. Vi a pobre e doente mulher encostada à entrada de uma das vielas medievais, a única que ia dar à minha casa e impossível de se transpôr sem se ficar ao alcance do seu inseparável cajado já polido pelo uso, coisa que nunca largava.

Olhei para ela. Nesse dia, trazia os cabelos esbranquiçados, muito emaranhados e com algumas folhas secas e palhas à mistura, certamente caídas da árvore debaixo da qual passara a noite, como era seu hábito. Os seus olhos brilhantes numa face amarelada, as suas roupas em farrapos, as unhas compridas e sujas, os seus braços magros e compridos, o seu corpo esguio com as pernas salpicadas de feridas metiam-me pavor e nojo.

Pelo caminho, fui assobiando para afugentar o medo que me invadia. Engano meu! Quando passei por ela, senti as suas mãos agarrarem-me pelos ombros e o cajado zumbindo nos meus ouvidos. Corri, quase sem fôlego, até chegar à casa, com a Fidjinha Jata (maluca) no meu encalço.

Anos depois, mais precisamente, em 1994, volvidas mais de quatro décadas, para espanto meu, ela ainda vivia, velhinha e apoiada ao seu inseparável cajado de chaluteira. Posteriormente, vim a saber que já não pertence ao mundo dos vivos, mas guardo na alma o medo daquela mulher, que nunca a ouvira falar o crioulo, mas sim um refinado português, de fazer inveja a qualquer um, coisa dos espíritos - dizia a voz do povo...

Ainda hoje penso como foi possível a um ser, abandonado nas ruas, dormindo ao relento e sem qualquer assistência médica poder viver tantos anos?!. A Lua Cheia tinha uma grande influência naquela criatura, que, durante o resto do mês era uma pessoa tímida e recolhida no seu ego, a um canto de um muro qualquer!

Figuras Típicas de S.Nicolau

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