terça-feira, 16 de setembro de 2008

Victor

Enquanto o Sol se escondia na Centinha, foram passando pela minha retina algumas figuras típicas da ilha de São Nicolau, que me impressionaram durante a meninência, já não pertencentes ao mundo dos vivos, com excepção do Victor - um pescador dos Carvoeiros. Quem sai da Estância, seguindo a estrada da Chãzinha, sempre com o vale das Maiamas à direita e o mar da Prainha ao fundo, vai dar à povoação dos Carvoeiros, alcantilada no meio do verde das plantações de bananeiras e cana sacarina.

Os telhados são encarnados e as paredes caiadas de um branco imaculado, pintalgando a paisagem, tendo por fundo o azul do mar. Foi assim que vi a Povoação dos Carvoeiros. Durante a minha meninice, ela era também bela, mas com poucas casas de telhas encarnadas - as de alguns americanos - que voltaram à terra "para nela deixarem os ossos" - como dizia tio Cleto! O cinzento das coberturas das casas de palha confundia-se, agora, com o escuro da paisagem.

Passemos adiante:
Foi nos Carvoeiros que nasceu o Victor - um criado da casa dos meus pais - que, nos anos quarenta, logo após a guerra e fome duradoiras, veio procurar trabalho na Estância, era o autor ainda menino. Homem rude, vivera sempre no interior da ilha, trabalhando a terra ou pescando nos mares do Silvão, de bote ou à linha.

O Victor era alto, espadaúdo, tez escura, rude mas sincero e gostava de contar estórias de bruxas e de feiticeiras aos meninos da minha idade. Mamãe, que precisava de um trabalhador para a Ribeira da Caixa, contratou-o, de imediato. Recordo-me dele, pois ainda vivia, quando lá estive, em 1994. Perguntava-me, com a maior das naturalidades:

"O menino come com essa coisa que tem bicos e parece um arpão para a pesca do polvo"? Tratava-se de um garfo, coisa que ele até então desconhecia. À noitinha, ou quando se procedia à debulha do milho, das favonas e dos feijões das hortas, abeirava-se de mim para contar os encantadores contos do Lobo e do Chibinho, dos Capotonas, dos Gongons e das feiticeiras da Ribeira Prata, Ribeira Funda. Belas estórias, Victor!

Em data recente(1994) fui encontrá-lo (velhinho, claro está), a medir e vender água em latas, no Chafariz Municipal da Estância, porque a Bica da Passagem já não existia. O Victor, aos poucos, foi tomando contacto com um meio diferente e, anos depois, constituira família, continuando a trabalhar nas nossas propriedades. Lembro-me da época das podas aos tamarindeiros, cuja lenha mamãe vendia às padarias, a bom preço.

O Victor dirigia a faina, escolhendo os ramos menos necessários, serrando os troncos e acarretando-os para o local de secagem. Certa vez, mamãe notara que algo de anormal se passava. Ainda não vendera a lenha e os montões de feixes estavam cada vez mais magros...

- Victor! O que se passa com a lenha?! - perguntara-lhe mamãe, meio furiosa!

- Nada, Nhá Mélia...

Mamãe mandou vir da Estância alguns quilos de cal virgem que misturou com água e, com um pincel, numerou os feixes de um a quarenta. O Víctor não sabia ler e só contava até dez, pelos dedos. Assim que o galo cantou na amendoeira brava do quintal, mamãe levantou-se e foi direitinho contar os feixes de lenha e deu pela falta de um, com o número treze.

Fez as suas investigações e, dias depois, foi encontrar o feixe de lenha no quintal da casa da companheira do Víctor, na Estância, ainda por desmanchar... Muito envergonhado e apanhado na ratoeira, o Victor confessou-se autor do desaparecimento da lenha, prometendo não mais tornar a fazê-lo... No dia seguinte, com um lápis nas mãos e um pedaço de papel retirado de uma saca de cimento, abeirou-se de mim:

- Didi! (assim me chamava), a partir de hoje, quero aprender a ler, escrever e contar, pelo menos até treze...

Figuras Típicas de S.Nicolau

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