sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Nhô Móne Tau

Quem era esse tal Mano Tau? Estará curioso o leitor amigo!

Figura muito singular, a desse homem que conheci durante a minha meninência, quando me deslocava à sua velha carpintaria, situada num sobrado abandonado, no Alto do Pasmatório (local onde existe uma Igreja protestante), para lhe dar algum recado do papai, ou, simplesmente, para admirar os trabalhos que ele fazia com a madeira, nomeadamente, violas, violões, cavaquinhos, rabecas e outros instrumentos musicais.

Da última vez que o visitei, foi para saber se já colara as per-nas da cadeira de balanço de papai coisa da sua estimação e que, dias-há, estava na sua oficina aguardando uma folga do artista, a chegada do grude de São Vicente ou boa disposição.

O Mano era um homem de mil ofícios: carpinteiro, relojoeiro, mecânico e muito mais. Na sua atravancada oficina e residência, ele corria de um lado para outro, por entre os montões de cavacas e de serraduras de aromáticas madeiras da Guiné. No ar havia sempre aquele cheiro a grude acabado de cozer em banho-maria, a vernizes e a tintas.

Nas paredes viam-se penduradas as ferramentas, os moldes em papel, as facturas e até calendários de anos já passados. Havia um, de mil novecentos e quarenta, vindo da América e com uma vista da Estátua da Liberdade.

Mano Tau era um homem robusto, atarracado mesmo, já com os cabelos e barba brancos, trazendo, quase sempre, por detrás da orelha direita, um lápis amarelo de ponta grossa daqueles que os carpinteiros usavam.

Na orelha esquerda viam-se os restos de um cigarro morto, manchado de nicotina e retorcido. O Mano necessitava das suas duas mãos para colar a barriga ou as almas dos instrumentos musicais que reparava, e o cigarro, feito com tabaco da marca Gool, ficava guardado atrás das suas largas orelhas.

Esse homem sempre me impressionou positivamente, desde a minha meninice, pela sua viva inteligência, pela sua habilidade manual e entusiasmo postos na feitura das coisas, das mais simples às mais complicadas, sempre movido por um grande sentido prático da vida.

De trato afável, muito conversador e amigo da pequenada, que andava à sua volta para apanhar os restos das madeiras para os carrinhos de brincar, ou pedindo-lhe que fizesse, no seu torno, um pião de pau de laranjeira para as nossas brincadeiras. Mano Tau agradava a todos, dos mais novos aos mais velhos.

Consertava os relógios de quaisquer marcas, de pulso, ou de algibeira, os gramofones americanos com as cordas partidas, as ventoínhas e até as telefonias a última palavra da técnica de então. Vestia-se, quase sempre, calças de ganga azul de suspensórios, que recebia de um tio da América, camisa de xadrez e gostava de beber o seu cálice de groguinha, na sua oficina ou nos botequins, acompanhado de algum amigo ou freguês satisfeito.

Hoje, penso que, se fosse dado ao Mano Tau uma oportunidade para estudar (o homem que inventou uma máquina automática para medir os tecidos nas peças durante os balanços anuais), poderia ter sido um cientista ou, quiçá, um artista de renome. Infelizmente, quantos rapazes com talentos, como esse, ficaram pelo caminho! O ensino não era para todos...

O Mano foi uma dessas criaturas perdidas no espaço e no tempo! Paciência, já faleceu! Foi esse artista que, empoleirado no alto das escadarias da torre da Sé, por entre as rodas dentadas, roldanas, pesos e engrenagens várias e com dois grogues na asa, tomados no botequim da esquina do Terreiro, tentava consertar os delicados mecanismos desse secular relógio, que fazia parte da história e das vidas das gentes da calma Estância – uma vila situada no vale da Ribeira Brava onde nasceu o autor.

A reparação do relógio era um árduo trabalho para o Mano Tau, pela exiguidade de espaço do trabalho e que certamente lhe tomaria quase toda a manhã. Ao descer o último degrau da escadaria de acesso à torre, e ao pisar o chão de lajes de pedra da porta da Igreja, trazia naquele rosto cândido e simples de um homem bom um nítido sinal de contentamento do dever cumprido.

Sabia que as badaladas desse antigo relógio eram as únicas marcas no tempo para aquela pobre gente, sem mais referências que não fossem o assomar e o cambar do Sol, todos os dias, lá para os lados do Morro do Lombinho ou do Monte da Centinha. Falei com o Mano Tau, no Largo do Terreiro, à sombra das frondosas amendoeiras bravas carregadinhas de frutos encarnados, debicados pelos pardais de coqueiros, vindos do Tanchon.

O suor escorria-lhe pelo rosto, sempre por barbear, onde os pêlos brancos já eram predominantes. Ele explicava a todos os curiosos, onde eu me incluía, os trabalhos complicados para ”pôr aquela geringonça nos eixos”, enquanto enxugava a cara com um lenço amarrotado e amarelado pelo pó e uso prolongado.
Mano? Nhô Mano, vai uma groguinha?

Era o chamamento de um dos comerciantes do Largo do Terreiro, seu reconhecido amigo de velhos tempos...

Vou já aí ter! Era a sua voz rouca, acompanhada pelo incessante gesticular dos braços.

O Mano continuava a falar aos mais curiosos, e eram muitos.

Após a trabalheira de hoje, o malvado do relógio está aí para durar. Ainda ele vai ficar a bater horas, quando o meu e vosso relógio o de dentro do peito,- o coração parar de vez, mais tempo, menos tempo! Sim ele também pára um dia...

Momentos depois, o velho relógio batia as doze badaladas do meio-dia. O som vinha do alto da torre, através da grade de ferro enferrujado, protegendo um sino de cor esverdeada. Como era hábito na terra, as pessoas idosas, as mais crentes, rezaram em surdina:

"Ave Maria, Cheia de Graça..."

Adriano Gominho – Caminho Longe de S. Tomé

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